A – MISSÃO E DIACONIA SOCIAL ECUMÊNICA

MISSÃO E DIACONIA SOCIAL…

Derval Dasilio

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MISSÃO E DIACONIA SOCIAL ECUMÊNICA

Derval Dasilio

Tudo que fizerem, façam de todo coração… porque é a Cristo, o Senhor

(da Igreja) que vocês estão servindo” (Col.3,23)

 

Tudo que fizerem, façam de todo coração… porque é a Cristo, o Senhor (da Igreja) que vocês estão servindo” (Col.3,23)

Corresponde à própria natureza da Igreja que ela tenha uma missão para o mundo inteiro. Uma missão de Deus (missio Dei). Essa missão é cumprida através de ministérios na igreja visível, como poderiam dizer Calvino ou Lutero, ou Inácio de Loyola.  Um consenso teológico admite a existência da Igreja Invisível, cuja cabeça é Cristo Jesus Cristo. Não há ministérios na igreja invisível, no entanto, nem ordenados, nem ministérios para diversas finalidades. A igreja visível, ao contrário, é um corpo visível cujos membros são identificados pelos vários órgãos que lhe dão vida e movimento. Um segundo ponto, também consensual no protestantismo, é aquele que alcança uma compreensão sacerdotal para todo o povo de Deus, mas que se cristaliza na espiritualidade funcional de responsabilidade em relação à participação na salvação do mundo (1Pd 2,4-9). É a doutrina dos reformadores protestantes referente ao “sacerdócio universal de todos os crentes”, um sacerdócio espiritual e irrestrito que compreende uma obrigação inescapável aos cristãos e cristãs, especialmente no mundo “civil”, ou na sociedade civil, como se diz, em função intercessora e libertadora, diante de Deus e de sua Igreja. A Igreja é de Deus. O espírito sacerdotal de serviço e intercessão aponta para a diaconia dos crentes, motivação essencial do sacerdócio real.

Na religião de Jesus e dos apóstolos, esse ministério era cumprido por sacerdotes hereditários desde a liturgia ao serviço do templo. Devemos denunciar aqui a continuidade que o cristianismo posterior e recente tem dado a esses ministérios do Judaísmo. Ora, diáconos, presbíteros, padres, pastores, não se equivalem aos sacerdotes e levitas do Antigo Testamento, aos quais se obrigavam aos deveres do Templo. A parábola do bom samaritano identifica a motivação de todo homem e de toda mulher quanto ao cuidado com o outro, o próximo: “Quem realmente cumpriu o mandamento do amor ao próximo”?, perguntaria Jesus (Lc 10,25-37). Temos indicações, aqui, de que à religião de Jesus e dos apóstolos faltava o ministério do cuidado, da compaixão ou da misericórdia. Que se dirá da solidariedade?

Diáconos e diáconas são citados nas cartas paulinas (cf.Rm 16,1s). A passagem em Gálatas 3,27-28, porém, é decisiva quanto à reforma que combate o patriarcalismo funcional: …porque todos quanto fostes batizados em Cristo, de Cristo vos revestistes. Daí, não pode haver nem judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher, porque todos vós sois um em Cristo Jesus. Para o serviço do culto, no entanto, ou quaisquer cargos que se exercem na igreja, o termo diácono, como serviço ou ministério (diakonia) não pode ser aplicado, a partir da Bíblia, sem correções. As funções de direção da comunidade eram exercidas indistintamente por homens e mulheres. E, nesse caso, não há qualquer configuração hierárquica ou patriarcal. A estrutura não-hierárquica da comunidade paulina organizava-se orientada pela participação dos carismas, ou dons da graça (xáris=graça de Deus, misericórdia divina, cuidado;equivalente a hesed, no AT). Não se pode confundir, aqui, com o serviço do “templo”, que dois séculos depois se estabeleceria, nos primeiros templos cristãos, dentro do patriarcalismo funcional pós-bíblico, repetindo a  exclusão da mulher, como no judaísmo formativo. Igrejas domésticas predominam no tempo bíblico, seguramente). Nas comunidades cristãs primitivas um modelo orientava-se pelo que Jesus ensinara, enquanto o esboço de igreja itinerante já era delineado no “movimento” reformador por ele liderado. Quem quiser tornar-se o maior dentre vós seja aquele que serve [grego=diákonos]; quem quiser ser o primeiro será vosso servo [gr.=doulos] (Mt 20,26-27).

No Segundo Testamento, Jesus Cristo entregou a seus discípulos, antes de serem apóstolos e ministros, antes de terem reconhecidos os dons especiais e sua diversidade, a missão que é nossa  motivação no trabalho, “no” e também “para” o serviço de Deus. Apontou caminhos. Jesus inaugura o Reino, mas informa que ele está “diante” e “dentro” de cada um de nós. Aos olhos obedientes podem-se ver as tarefas. Aos que reclamam por espiritualidade, Jesus indica vida interior na riqueza da vida fé e no êmulo da esperança, da utopia do Evangelho. Há um apelo de interiorização da fé, no grande encontro com Jesus Cristo.

Significados conseqüentes do encontro: amadurecemos para a vida de fé quando mergulhamos na realidade dos homens e das mulheres; quando percebemos as exigências do discipulado ministerial e “sacerdotal” para vermos a presença salvadora e libertadora de Jesus Cristo no serviço cristão. Discípulos de João Batista vieram perguntar “se Jesus praticava a diaconia de Deus”. Tiveram a seguinte resposta: “Ide e dizei para João o que vistes e ouvistes: os cegos vêem, os coxos andam, os marginalizados pela doença são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres anuncia-lhes o evangelho libertador” (Lucas 7,22; paráfrase do autor).

O CRISTIANISMO LATINO-AMERICANO E A DIACONIA  – PASSADO DESABONADOR

Um tipo de evangelização que se faz pelo medo torna impossível a busca da paz, segundo a Escritura como uma ação diaconal numa cultura ou sociedade. Leonardo Boff cita um sábio maia do século XVI, denunciava profeticamente essa perversidade: “Ah! entristeçamo-nos porque chegaram os cristãos… introduziu-se entre nós a tristeza… Entre nós foi introduzido o cristianismo… Ensinaram-nos o medo. Vieram para matar as flores. Mataram nossa flor para que somente a flor deles vivesse”. Essa ordem cristã européia, apresentada como ordem divina, era falsa. Não podia vir de Deus. Deus foi usado para forjar uma ideologia justificadora da conquista do mundo pela cristianização. Todos os cristãos se tornaram cúmplices. Pouquíssimas foram as exceções, que mal podiam se expressar. Além de tudo, as pessoas estavam ameaçadas pela Inquisição. Não sem razão essa ordem produziu mais morte do que vida, mais guerra do que paz. O profeta maia Chilam Balam de Chumayel (séc. XVI) desmascarou a “evangelização cristã” com sua pretensão de ser vontade de Deus: “Os cristãos em grande número vieram para cá com o verdadeiro Deus. Mas isso significou o começo de nossa miséria… o início do nosso sofrimento… Este verdadeiro Deus que veio do céu fala só de pecado e sua doutrina é só pecado”. Protestantes e católicos não falam esta mesma linguagem? A encarnação do Filho de Deus significa ou não trazer paz  a todos os homens de boa vontade (shalom = corresponde a todas as carências humanas atendidas; o termo habraico indica: desejar a paz é desejar ao outro “estar inteiro”, nada lhe faltando)?  Não é o evangelho boa notícia e, por isso, força geradora de concórdia e de paz?

Aparentemente silenciada, desde o Caribe, e toda América Latina, a esperança da ressurreição do “cristianismo” dos apóstolos e discípulos da Igreja Inicial permanece na memória e na experiência da escravidão, como uma força libertária, em toda parte. Libertação do colonialismo eclesiástico, protestante ou católico, não importa se bem sucedidos ou não, inclusive na concepção eurocêntrica, ou na norte-americana (protestantismo de missões). Faz parte da fé dos povos latino-caribenhos. A África está na vida e nos costumes, na linguagem e no patoi das plantações, no Caribe; a América Latina, nos nomes e nas palavras, é freqüentemente conectada em suas taxonomias, identificando plantas e produtos agrícolas, na secreta  estrutura sintática da fala comum, nas histórias contadas às crianças, na prática religiosa e nas crenças, na vida espiritual, nas artes, no artesanato, na música e nos ritmos da escravidão, e das sociedades pós-emancipadas. A esperança é um gemido, um código secreto com o qual todos os textos ocidentais precisam ser re-lidos, o bumbo que marca o compasso dos ritmos e corpos que se movimentam nessa história, sambando, rumbando; dançando o reggae, o merengue e a salsa, na festa da libertação (cf. Leslie R. James, A Esperança e a Questão de uma Nova Humanidade, Trad.: D.Dasilio, em preparo). Situação análoga, no Brasil, sob o protestantismo de missões, foi o compromisso com a libertação dos escravos. Não se pronunciaram sobre o holocausto cultural de 20 milhões de negros escravos, na América Latina.

[Algumas fontes informam que já na esquadra de Cabral vieram alguns negros, mas ‘oficialmente’ os africanos escravizados só começaram a chegar por volta de 1530, com Martin Afonso de Souza. Os números de africanos que chegaram aqui na condição escrava também divergem mas, pelos dados do Prof. Décio Freitas, aqui chegaram 40% dos 9,5 milhões de africanos que foram trazidos para às Américas. Ou seja, pelo menos 3.800.000 de africanos foram escravizados neste Brasil, mas considerando que a mortalidade nos navios negreiros era altíssima, na verdade devem ter sido embarcados na África até mais que o dobro desse número. Então, quase 20 milhões de africanos foram traficados para as Américas sendo que Brasil comprou escravos durante quase 350 anos, o que pode dar idéia dessa tragédia social. Segundo alguns autores, a escravidão indígena foi ‘abolida’ em 1755 e a negra em 13 de maio de 1888, mas no Pará, mesmo após 1888 haviam escravos. Comprados e vendidos após avaliação da idade, músculos, dentes e vigor físico em geral, os africanos – chamados de negros, pelos dominadores- realizaram, sob chicotes e humilhações, todos os trabalhos necessários para construir as bases do que o país é hoje – extraíram ‘pau brasil’, cultivaram cana-de-açúcar, café, algodão, tabaco, extraíram minérios, produziram borracha, construíram moradias, orgãos públicos, palácios, igrejas imponentes, mas habitavam ‘animalizados’ as infectas senzalas, ou ‘docilizados’ em alguns pedaços de chão nas propriedades e ‘casas grandes’ – Nilma Bentes, Cedenpa – Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará].

Muito menos sobre os 3,5 milhões de índios, no mesmo período.  Mesmo sabendo que a religião oficial do Estado era a católica, portanto e reconhecidamente a serviço das elites, estas somente deram o aval ao império para o fim da escravidão através de uma “abolição gradual” (cf.Lei do Ventre Livre), enquanto reconheciam os riscos enormes  de distúrbios através de hordas de ex-escravos reclamando comida, trabalho, habitação. E também porque já não lhes interessava manter a escravidão, face às exigências comerciais do império britânico, dominador do mundo naquele momento.

Desconhecemos qualquer participação incisiva do protestantismo brasileiro, enquanto sabemos o quanto se omitiu a igreja católica, no momento político e social referente ao problema. Porém, deve-se compreender a ausência de qualquer influência do protestantismo incipiente, naquele momento. O da abolição da escravatura. Não havia liberdade religiosa no Brasil Imperial. O quadro político-econômico era de profundas transformações na economia mundial. A “revolução industrial”, enquanto criava meios para que se estendesse a rede para a expansão econômica do Império Britânico, cujos tentáculos alcançavam desde o Oriente distante ao que chamamos hoje de Cone Sul na América Latina, com o Império Britânico, dita as regras para o mercado mundial.

Chega ao Brasil? Aqui, o modelo de país que se entendia, ainda, imperial, no século XIX, possuía uma população que em sua maioria não era considerada povo. Escravos e depois ex-escravos, no Rio de Janeiro onde o protestantismo  chegava, constituíam uma população estimada em 55% de negros, enquanto os mulatos (pardos?!) eram incontáveis (cf.Derval Dasilio, “Reescrevendo nossa vida política diante do racismo”, Uma História de Lobos, Demônios e Anjos).

Claro que, assim, lhes eram negados os mais elementares direitos. A propriedade de terras conservava o sistema de sesmarias. Obviamente, escravos, mesmo alforriados, e agregados, não gozavam do direito de posse. No cotidiano, o regime de trabalho comum era o da escravidão. Na agricultura prevalecia a monocultura. A exportação de mercadorias era totalmente vinculada aos interesses de outras nações, principalmente a Inglaterra. Neste cenário, o protestantismo se instala. É a mesma história, do presbiterianismo, do luteranismo, do congregacionalismo, do anglicanismo episcopal, do metodismo, do sistema eclesial batista. Só no século XX chegariam os pentecostais. Estes, em seis décadas, passariam a dominar a cena do cristianismo não-católico. Logo comporiam, também dominando, a força alternativa ao protestantismo original, no Brasil.

EXEMPLOS DE UMA DIACONIA CRISTÃ E ECUMÊNICA

O CMI  e o CLAI são uma comunidade de igrejas que confessam  Jesus Cristo como Deus e Salvador, segundo o testemunho das Escrituras, e procuram responder juntas à sua vocação comum para glória do Deus Único, Pai, Filho e Espírito Santo. O CMI há pouco tempo alertou suas igrejas-membro que esta declaração, mais que uma confissão de fé ou fórmula, é “uma referência para os membros do CMI, fonte ou fundamento de coerência”, inclusive para uma diaconia ecumênica. Não sendo o CMI em si mesmo uma igreja, não faz juízo algum sobre a sinceridade ou firmeza com que as igrejas-membro aceitam a base nem sobre a seriedade com que assumem sua qualidade de membros. Neste sentido, o CMI é um organismo composto de igrejas cristãs que a ele aderem com propósitos da unidade, solidariedade, serviço e apoio diaconal e social. O CMI faz destinação de recursos a projetos e programas que busquem a unidade visível da Igreja, a missão e a evangelização, a formação ecumênica, a ética da vida e propostas alternativas à globalização, defesa e promoção conjunta da justiça e a solução pacífica de conflitos de toda natureza. A diaconia ecumênica é uma bandeira para a visibilidade da Igreja de Cristo. O CMI trabalha especialmente com o diálogo inter-religioso nas questões sociais e na solidariedade ecumênica.

Na América Latina, o CLAI representa o reconhecimento da situação especial e diferenciada que latinos e caribenhos (de língua francesa, inglesa e espanhola) representam para uma diaconia social ecumênica. O crescimento da Igreja Evangélica e as necessidades paralelas de reconhecimento das situações de opressão e miséria da grande população, de desigualdades gritantes entre favorecidos e desfavorecidos, bem-postos e mal situados, no sistema sócio-econômico latino-americano, ocorre num cenário de descompromisso social. A Igreja Evangélica encontra-se numa situação de mudança. Uma minoria religiosa de pouca expressão pleiteia tornar-se propositiva, facilitadora, motivadora de mudanças em políticas públicas governamentais em todos os níveis. Pretende a Igreja Evangélica ser um espaço de  socialização de meios e fins sociais, como ações diaconais cooperativas, solidárias, ecumênicas, ponto de encontro, comunidade de esperança, de aliança e de solidariedade, declarava-se no CLAI (Igreja, Sociedade e Pobreza, 4a.Assembléia do CLAI).

A CESE (Coordenadoria Ecumênica de Serviços), sediada em Salvador – BA, é o exemplo mais completo de Diaconia Ecumênica no Brasil. Todas as igrejas do CONIC (Concílio Nacional de Igrejas Cristãs) apoiam a CESE. Algumas, como a ICR (Igreja Católica Romana) a compõem desde sua fundação, há quarenta anos atrás.

LINHAS INTERESSANTES PARA A AÇÃO DIACONAL ECUMÊNICA

Sendo nossa compreensão de diaconia social ecumênica uma afirmação de esperança na transformação da sociedade, a dimensão propriamente social e cultural deve ser vista a partir da situação concreta das comunidades de fé (igrejas locais) e das igrejas nacionais (denominações). Sendo espaços e lugares de relações, ações cooperativas, intercâmbio, diálogo entre igrejas, os diversos seguimentos da sociedade envolvidos com as questões de serviço cristão devem constar na agenda  da comunidade cristã. Ações diaconais implicam na partilha de bens espirituais das comunidades, no desenvolvimento  de valores de solidariedade, cooperação, fraternidade, bem-estar espiritual, reconhecimento da dignidade humana (dignitatis = aquilo que toda pessoa tem direito), do próximo e do distante,  e acima de tudo a manifestação imediata e concreta do amor de Deus (hesed, xáris = Graça, Misericórdia, Cuidado, Compaixão). A realização de projetos de vida para grupos sociais mais vulneráveis, desassistidos, excluídos das políticas públicas, expostos a riscos severos, orientam a ação diaconal social e ecumênica. Que perguntas devemos fazer, para se delinear um projeto de ação diaconal ecumênica? Vejamos:

–   Como prevenir o dano biográfico e psicosocial na infância, adolescência e juventude? Drogas, violência, deserção escolar, trabalho precoce, prostituição infanto-juvenil, gravidez de adolescentes, AIDS, mendicância, delinqüência, legislação repressiva, antecipação da maioridade penal, e outros, constituem ameaças severas para a juventude? Em que sentido podem colocar em risco o projeto de Deus de vida plena para esse seguimento? Desde a perspectiva da infância e da juventude, como a diaconia social poderá atender às demandas para uma permanente responsabilidade dos cristãos e das igrejas em relação às crianças, adolescentes e jovens?

–   Como interpelar a sociedade, e a própria Igreja, sobre sua responsabilidade na reconstrução das relações entre homens e mulheres, atores ativos da violência intra-familiar, a partir do reconhecimento mútuo como seres humanos iguais em dignidade, liberdade e responsabilidade? A respeito da violência contra a mulher, a criança, discriminação por causa do sexo ou gênero, constituem um chamado ao serviço libertador de pessoas, famílias, grupos de gênero, entre as propostas de serviço ao outro e à outra com as quais Jesus Cristo se identifica?

–   Pessoas da terceira-idade têm um lugar legítimo, valorizado e plenamente participativo nas famílias cristãs ou não, da sociedade ou da igreja?  A presença de idosos em nosso meio constitui uma riqueza para nós, ou se apresenta como um peso a ser tolerado, ou sublimado  abstratamente, como nos tem ensinado a cultura bíblica e religiosa cristã e protestante? Em que ponto pode a diaconia social cristã ajudar no sentido de integrar o idoso na participação dos valores da sociedade contemporânea, referentes à cidadania, direitos humanos e dignidade humana? Levamos em conta que o Deus da Bíblia, por si mesmo, não pode ser avaliado segundo as configurações simbólicas do velho que já fez tudo, cumpriu seu papel, e nada mais precisa fazer, além de contemplar um passado ancestral (Disse Jesus: “Meu Pai ainda trabalha….”)? Consideraremos que a velhice é a proximidade da plenitude, no entardecer da vida biológica ou que a velhice é o tempo em que a vida se recolhe e não pode mais brilhar e dar frutos visíveis e maduros? (CF-2003, Texto-Base).

Um dos problemas do protestantismo da América Latina, como diz René Padilha, está na formulação de uma pregação espiritualista ao extremo. Após a demolição da realidade humana, onde os fatores sociais, políticos, econômicos, foram relegados ao gozo celestial, na “glória”, a religiosidade protestante e evangélica passou a dar mais importância, até ao exagero, da condição futura, escatológica, do crente; acentuou valores inexplicáveis às questões espirituais, desprezando, assim, a dimensão humana, existencial, social e estrutural do ser humano. 

Desse modo, como se fosse possível ao ser humano viver à parte da sociedade e das questões sociais, principalmente aquelas que envolvem o esquecido pelas políticas públicas, desgarrado, esmagado, pisado e triturado pela sociedade da qual nós mesmos somos parte, desenvolveu-se uma espiritualidade negativa, quanto aos ministérios e ações “para fora” da Igreja; em relação à sociedade e supostamente positiva “para dentro” da Igreja. Por mais crentes e espirituais que os indivíduos possam ser, ainda assim os mesmos estarão dentro de um contexto social e estrutural concreto, no entanto. Sendo o crente acima de tudo cidadão, até o não-crente dirá que não é possível a ninguém comportar-se como um ser celestial em esboço, enquanto na terra.

O Evangelho de Jesus Cristo, porém, aguça ainda mais a questão ao nível do serviço ao próximo e à próxima, aos “distantes”, inclusive, não se permitindo que o Reino seja abstraído da realidade humana. A missão de Deus para os crentes refere-se ao enfrentamento das situações concretas das desigualdades sociais e da exclusão, como Jesus ensinou.  Ser amigo de Jesus e vê-lo no pobre e no excluído, no oprimido e no desprotegido e des-assistido:

“Quando foi que te vimos como imigrante e sem-teto, e te recebemos em casa, e sem roupa e te vestimos? Quando foi que te vimos doente ou preso, e fomos te visitar? Então o que reina (no Reino dos céus) lhes responderá: Eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês fizeram isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizeram. Depois o Rei dirá aos que estiverem à sua esquerda: – Afastem-se de mim, malditos. Vão para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. Porque eu estava com fome, e vocês não me deram de comer; eu estava com sede, e não me deram de beber; eu era estrangeiro, imigrante, sem-teto, e vocês não me receberam em casa; eu estava sem roupa, e não me vestiram; eu estava doente e na prisão, e vocês não me foram visitar.

Também estes perguntarão: – Senhor, mas quando foi que te vimos com fome, ou com sede, como estrangeiro, ou sem roupa, doente ou preso, e não te servimos? Então o que reina (no Reino dos céus) responderá a estes: – Eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês negaram quaisquer dessas coisas a um desses pequeninos, foi a mim que negaram” (Mateus 25,38-45).

Pela interiorização do encontro com o Cristo de Deus, o espírito humano está nas estrelas, superam-se todas as distâncias, transpõem-se todos os abismos entre os homens e as mulheres, inclusive os econômicos e sociais. Pela espiritualidade comprometida com o Cristo de Deus penetra-se no coração do universo, do mundo criado para a vida em plenitude, e comungamos com Deus numa eucaristia de vida plena e de abundância do Pão do Céu para todos que têm fome de justiça política, econômica, social. Sonhamos e elaboramos utopias em torno dessa espiritualidade profunda.

Em Cristo, todas as ressurreições são possíveis, no mundo onde impera a morte. Pela ressurreição do homem e mulher, o espírito humano também ressuscita;  os modos de pensar sobre o sentido da vida, existência humana, sempre presos a este tipo de mundo, vêem-se libertados. Acompanha o espírito humano um sentido de plena ressurreição. O modo de ser das criaturas humanas é egocêntrico por excelência, por educação conformista e por determinismos da vida social, política, econômica. É esta a razão que separa todos os homens e mulheres. Os determinismos religiosos  também alimentam os abismos que separam homens e mulheres, onde há capitulação a um mal “irreversível”, porém noutra ordem. Pelo fatalismo nas histórias pessoais, pela crença no destino imutável do ser humano, pelo pessimismo quanto às possibilidades de transformação, pela espiritualização da miséria e das opressões concretas, através do conformismo, aprofunda-se a erosão social existente. Tudo isso diminui o significado da existência do Deus Salvador e Libertador. Se Deus não salva ou liberta, para que servirá?

Enquanto Espírito, Deus está presente em tudo e tudo penetra. A fé cristã nega que existam abismos instransponíveis entre a realidade e a utopia de salvação, especialmente os sustentados pelo jeito de pensar religioso, político, sobre a sociedade e o mundo. Claude Labrunie perguntava, no púlpito de uma das nossas igrejas: “de que Jesus nos salva?” e responde: “Em primeiro lugar, de nós mesmos”. Salva-nos para a ressurreição do corpo e da alma. Pela ressurreição, o ser humano passa do modo de ser carnal, (centrado no interesse egoísta de auto preservação, quando vale pisar no pescoço de quem for para se sustentarem necessidades nem sempre vitais), para o modo de ser espiritual, concreto, engajado. O homem vive “peregrinando pelas montanhas, dentro dos vales”, sempre em busca de sentido para a vida que Deus lhe deu. Porque não lhe basta a afirmação de fé abstrata. Quem experimenta o amor que salva e liberta quer compartilhar esse amor salvador e libertador. Então o amor é importante, a compaixão e a misericórdia (heb.: hesed/ greg.: xáris) resultam em cooperação, solidariedade, compromisso com o desgarrado, esmagado, pisado e triturado da sociedade de todos os tempos. Portanto, a espiritualidade do serviço ao outro e à outra torna-se em participação do próprio de Deus. Deus ressurge das sepulturas onde se aplicam todos os meios para isolá-lo do mundo e da Vida.

“Senhor, quando foi que te vimos com fome, ou com sede, como estrangeiro, ou sem roupa, doente ou preso, e não te servimos? Então o que reina (no Reino dos céus) responderá a esses:  Eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês negaram quaisquer dessas coisas a um desses pequeninos, foi a mim que negaram”. Vemos a presença de Jesus Cristo entre os desabrigados, desprotegidos, famintos, doentes, como os portadores de enfermidades químicas: alcoólicos, tabagistas em vias de câncer pulmonar, drogaditos em todos os graus, por via lícita ou ilícita; entre menores infratores, adolescentes sob risco  social ou criminal, laranjas do crime organizado. Jesus Cristo está no meio do povo oprimido, marginalizado socialmente, vítima de políticas públicas omissas, mas em favor dos bem-postos; vítimas dos desvios de recursos que lhes deveria ser destinado, mas que desaparecem na corrupção política, no executivo, no legislativo e no judiciário. Jesus Cristo está no meio dos catadores de lixo e em todo lugar onde há opressão, injustiça, omissão ou indiferença  de quem  tem os meios e os recursos para assistir os despoderados, sem cidadania, e humilhados da terra (segundo a Bíblia: os órfãos e viúvas, sem-teto, sem-trabalho, sem-tudo para a vida digna que é merecimento de todos).

Jesus Cristo, frequenta os lugares de toda miséria, de toda opressão? A lição é esta: não se pode expulsar Deus da realidade humana. Afirmar a divindade de Cristo é fácil, reconhecê-lo disputando lixo, procurando emprego, casa pra morar, como vemos em nossas cidades, na periferia, sem família, sem escola, sem educação, sem saúde, é que são elas (Paráfrase: “… quando é que te vimos catando lixo?” – Mateus 25,44). Trata-se de uma exigência absurda, diante das Escrituras?

O papel das diaconias sociais é tornar importante a gratuidade de Deus para a salvação. A visibilidade da salvação está nos lugares que Jesus Cristo freqüenta. Para que o mundo creia na Graça salvadora e libertadora. Diaconia é viver uma espiritualidade que  traga às igrejas a vontade de Deus para o mundo (Karl Barth nos ajuda quando afirma que é Deus que toma a iniciativa de enviar, ou “missionar” para as diaconias, como quer João Dias de Araújo), que dê sentido ao serviço do cristão enquanto ciente do mercado desumanizante, dos esquemas de políticas públicas sem credibilidade, da irrupção de pensamentos consumistas que escondem a realidade da pobreza e da fome crescente, da falta de assistência adequada aos homens e mulheres a quem foi negado o mínimo de dignidade humana, enquanto permanecem corroídos pela desesperança, pela violência dos pecados das estruturas da sociedade em que vivemos, e da qual somos parte inegável.

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Derval Dasilio

Páscoa – 2007

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