2º Domingo do Tempo Comum – Ano B
1Samuel 3,1-20 –  Tu me chamaste, eis-me aqui…
Salmo 139,1-6;13-18 – Senhor, tu me sondas e me conheces
1Coríntios 7,29-31 –  Sois o “templo” de Cristo.
João 1,43-51 – A quem buscais? Venham, vejam.

Nos dias atuais nossas relações estão cheias de interferências, ruídos perturbadores que afetam a voz interior vocacional. A capacidade de escutar o que Deus quer nos dizer é frequentemente perturbada por outros sons, como as guitarras e as baterias da música gospel (um flagelo que vai tomando conta do culto evangélico), o apelo carismático que aponta “dons” ministeriais bem estranhos às tradições do cuidado com a formação teológica para o culto, o ensino e a pregação. O preparo bíblico nos seminários parece andar capengando, a julgar pela visão teológica de alguns, perdida no fascínio por modismos carismáticos ou apologéticas fundamentalistas, que refletem o ajustamento à mediocridade teológica que vem tomando conta de nossas comunidades.

Jovens que passam o tempo ouvindo mp3, iPod, cativos da “cultura gospel”, hoje, diferem muito do que era um jovem “presbiteriano”, “anglicano”, “metodista” ou “batista”, de duas décadas atrás. A maioria jovem pluralista evangelical, hoje, sabe o nome das “divas” do gospel recente (Ana Paula Valadão é a pastora mais admirada por jovens evangélicos, mas perde o primeiro lugar para o midiático Silas Malafaia); cita de cor o nome das bandas gospel, mas não sabe quantos livros tem a Bíblia; quantos e quais são os livros dos profetas; o que é a Torá judaica no AT ou a que parte da literatura bíblica está vinculado o livro dos Salmos. Menos ainda, personagens evangélicos decisivos como John Wesley, Cranmer, Calvino, John Knox e Lutero (Tomaz Münzer seria pedir demais…), não representam nada nesse ambiente novo da juventude evangélica.

A vida dos mais pobres – devíamos dizer dos “sem-cidadania” – não tem nenhum valor. Não contam para a sociedade, que cada vez mais se parece com as do mundo chamado desenvolvido. A massa de pivetes, crackeiros, traficantes de cocaína, vê nos ricos  apenas consumidores de drogas, e “trabalham” pra valer para atendê-los. Formam-se vocações para assaltantes, estupradores, assassinos gratuitos, à margem e ao mesmo tempo dentro da sociedade que dela parece depender. Chico Buarque ironiza o comportamento desses “agentes do consumo”:  “Quando, seu moço /nasceu meu rebento / não era o momento / dele rebentar / já foi nascendo / com cara de fome / e eu não tinha nem nome / pra lhe dar”. Conheço o caso concreto da jovem rica do Leblon, com nome de celebridade, cujos pais vivem a maior parte do tempo na Europa gastando eurodólares, que conhece todos os pontos de venda de droga do Vidigal, e dos inferninhos da zona sul, no Rio.

Um mundo agonizante, como diria Hannah Arendt, criado pelo desvario quanto ao sentido da vida, onde a insensatez é constantemente renovada. Chocante, no Brasil, não é tanto a truculência das agressões noticiadas ao lado dos casos de milionários jogadores de futebol que não sabem o que fazer da vida, enquanto alugam patentes militares como segurança ou quebra-galhos nos seus frequentes deslizes. Chocante é a ausência de indignação com tudo isso. A tragédia da salvação individual gera desconforto com os problemas do trânsito, onde mortes violentas são cometidas diariamente por membros das classes bem-postas, mas desconhece bolsões de fome, miséria e doença, nas metrópoles e no interior do país (cf.vídeo).

O ideal da “boa vida” oferecida aos jovens paralisa-os num estado de ansiedade permanente, responsável, em grande parte, pela incapacidade que têm de olhar para outra coisa que não a si mesmos (já começou o Big Brother/2012 com transmissão 24 hs/dia no canal Multishow). A rede de atendimento aos “famintos de felicidade” tornou-se um negócio rendoso, e os usuários, para mantê-la, exigem mais exploração dos que já são super-explorados. Ecstasy, viagra e fast-food são símbolos da excitação permanente em que se mantém os jovens (Dasílio, Pedagogia da Ganância, em preparo).

É expressiva a multidão de “especialistas” em felicidade sexual, amorosa e química que, em coro, propagam e reforçam na mídia o mito da salvação individual, num Brasil moderno, informatizado, liberalizado eticamente e com todos os problemas resolvidos, de antemão, pelas leis do mercado. Há receitas e locais de aviamento para quem quiser. Notória, a cultura narcísica no Brasil, “acha” o país o melhor do mundo: nosso futebol, nossas praias lindas; nosso cachorro é o mais manso, nosso gato tem o pelo mais macio, nosso passarinho canta mais bonito, e agora nos faz arrotar como potência econômica entre o cinco maiores do mundo.  Tudo isso fez com que os afortunados se apaixonassem pelo lixo e as inutilidades que produzem, tornando-se seus cúmplices e reféns.

Criou-se um círculo vicioso, onde a demanda por cuidados com a juventude, a beleza, a forma física, a realização sexual e o bem-estar perene, substituem vocações para a vida  cidadã, responsabilidade social e solidariedade. Nutre-se da miséria econômica dos mais pobres, ou remediados, e alimenta-se da miséria psíquica dos ricos. Além do mais, paralelamente à inibição da esfera pública, a cultura   produz a desagregação das próprias instituições encarregadas de proteger o parco quinhão da “felicidade de shopping-center”  (Jurandyr Freire). O cenário dramático dos que vivem com 2 “real” por dia, no Brasil, ou à custa da bolsa-família (paliativo provisório em caráter de esmola social, porém com certo valor — melhor ter que não ter –; trabalho, saúde assistida com qualidade, urbanização humanizada, são mais importantes, para se evitar a pobreza  viciosa, dependente e a imobilidade: “ninguém se liberta sozinho…” – Paulo Freire); a ignorância sobre 13 bolsões de miséria, 600 municípios, sem urbanização, hospitais, escolas, 20 milhões de pessoas vivendo sob todas as fomes do mundo… mostram que o palco não foi desmontado.

João 1,43-51 – Discípulos de João escutam-no expressar-se sobre Jesus, o “cordeiro de Deus”. Sem vacilações, na mesma forma ingênua do jovem Samuel (1Sm 3,1-20), sem perguntar, de antemão sabendo os significados dos compromissos e das mudanças em suas vidas, ao optarem pelo caminho de Cristo. O diálogo que se entabula entre os “vocacionados” e  Jesus é significativo: “Que buscas?”; “Mestre, onde vives?”;  “Venham e verão” (35-36; 39).  E logo são acolhidos.  O gesto simbólico diz muito: não basta proferir uma lição teórica sobre quem é Jesus, como forma de evangelização. É preciso testemunhar pessoalmente sobre os significados, os valores, o sentido da vida em comunhão com Cristo.  Seguir a Jesus é estar pronto para o impacto da experiência de Deus ampla e sem restrições, que envolve a vida imersa no mundo, por inteiro. João dirá, mais tarde, sobre uma oração de Jesus: “Pai, não te peço que os tires do mundo, mas que os guardes do mal”. As vocações existem e necessitam ser despertadas.

Natanael, depois de duvidar das qualidades do homem de Nazaré – lugar do interior palestino tradicionalmente desprezado pelos judeus, por questões históricas e raciais –, ouve sobre Jesus e convence-se de que ele é verdadeiramente o filho de Deus, o Messias esperado para mudar o mundo. O reinado de Deus está começando, muitos ouvem o chamado, conscientemente. A vivência do homem de Nazaré, testemunhando o projeto de salvação, de Deus, causa impacto na vida de qualquer um. Muitos se comovem, quando tomam conhecimento da abrangência da proposta de Deus de transformar o mundo, os pensares humanos; visão sobre o que acontece nos escalões do poder político; visão sobre partidos e governos que comandam o destino de milhões de pessoas; sobre  dirigentes comunitários vendidos, religiosos que manipulam votos dos crentes e tornam igrejas em “laranjas” de políticos corruptos, ensinando a roubar da nação. Visão para a compreensão da economia de um povo inteiro, suas necessidades, carências e urgências; para mudar o entendimento do papel não cumprido pelos legisladores e juízes, pastores do povo, mancomunados na opressão. Mudar o modo de ser religioso acompanhando e defendendo o modelo dos exploradores, em acordo com o poder e a cultura do opressor. Onde estão as vocações?